8 de novembro de 2015

Será que existe racismo em Fraiburgo?

No grupo do Facebook de Fraiburgo (aquele que me motivou a criar este blog), compartilharam a notícia sobre o caso de injúria racial contra a atriz Taís Araújo. A notícia informa que a atriz denunciou os agressores e relata os desdobramentos das investigações do caso. Mas o que chamou minha atenção foram os comentários de alguns participantes, como vocês podem visualizar a seguir:


Esses comentários têm vários problemas, para não dizer outra coisa. Vamos ao primeiro ponto (daria para fazer uns trinta!): Mesmo com boas intenções, não é correto dizer a uma pessoa negra, que ela é morena. Simplesmente porque ela não é morena, e sim negra. Além disso, chamar de morena dá a falsa ideia que chamar de negra é desagradável e ofensivo, como se ser negro fosse ruim e fosse necessário usar um eufemismo. Mesmo que soe como um elogio, realmente não é. Mesmo que muitas pessoas acreditem que estou exagerando, saibam que isso é um sinal de racismo.

Segundo ponto. Não é de nenhuma maneira relevante, neste caso, que ela seja considerada bonita. Geralmente os homens falam algo semelhante a "Você é linda e não deveria se preocupar com ofensas". O problema é que, quando você elogia alguém apenas com adjetivos que se referem a aparência, você está reduzindo tudo o que aquela pessoa é, em uma qualidade estética. Claro que homens podem dizer a uma mulher "Você é bonita, charmosa, arrumada..." sem más intenções. O que incomoda é que a mulher não se resume a isso. Ela tem qualidades profissionais, pode defender alguma causa, pode ter estudado anos algum assunto, ter treinado, se empenhado, ter talentos, ter capacidades intelectuais diversas, mas tudo vai por água abaixo quando se referem a ela como "bonita" e apenas isso (ou em primeiro lugar). Isso reduz a mulher a qualidades físicas, como se ela tivesse apenas um valor decorativo na sociedade. Coloco aspas na palavra bonita, porque a ideia de beleza é muito relativa. Afinal, o que é ser bonita(o)? Na verdade, construímos esteriótipos de beleza com padrões que, em nossa sociedade, desvalorizam as negras, gordas e baixas, por exemplo. Assim, temos um viés naquilo que consideramos belo, e esse viés pode ser resultado de um preconceito. Isso não significa que elogios com relação a aparência física sejam moralmente condenáveis. Não é essa a questão. Todos gostamos de elogios. Devemos apenas ampliar essa visão, evitando resumir a mulher à sua aparência física.

Terceiro ponto. Alguém cita, de forma descaradamente ofensiva, que gostava de Chica da Silva porque, ao invés de complicar, ela conversava com o "Comendador" e tudo se resolveria. Pra quem não sabe, Chica da Silva viveu por volta de 1732 a 1796 e foi escravizada no Brasil. Ela conheceu João Fernandes de Oliveira, um homem rico e influente na época e tornou-se sua companheira. Dessa forma, ela foi alforriada e teve uma posição de destaque na sociedade por ser companheira de uma personalidade influente. Novelas, filmes e séries têm retratado Chica da Silva como uma pessoa promíscua e com apetite sexual desregrado (Taís Araújo interpretou um desses papéis). Por si só, isso nos remete a outra discussão sobre racismo pois, segundo historiadores, essa representação é uma farsa (veja, por exemplo, o relato da historiadora Júnia Furtado e o texto do historiador Fábio Pestana Ramos). Mas voltemos ao comentário mencionado. Ao citar o que viu sobre Chica da Silva na mídia, insinuou com escárnio que a mulher vítima de racismo deve barganhar ajuda através de relações sexuais. Não é preciso explicar o quão ofensivo é isso.

Quarto ponto. Quem afirma que uma pessoa rica e famosa denuncia racismo apenas para se "promover", que é uma "boca mole", que tem que ignorar, que tem que fingir que não aconteceu, que é "só pra complicar", etc, aqui vai uma pequena informação de utilidade pública: Independente de qualquer condição social, qualquer que seja a situação em que ocorreu o crime, este deve ser denunciado. Às pessoas que fizeram essas afirmações, falta respeito, falta ética, falta bom senso, falta educação, falta vergonha, falta empatia, e acima de tudo falta amor. Amor ao próximo. É por causa desses pensamentos e atitudes que o racismo torna-se tão enraizado e tão difícil de ser extinto. A existência de discursos que não mostram a mínima consideração por aqueles que sofrem racismo e injúria racial, e expostos de forma tão inescrupulosa em uma página pública do Facebook, mostra o quão racista é nossa sociedade. Acredito que as pessoas que pensam dessa forma não imaginam que, se isso acontece com uma pessoa famosa, acontece de forma muito mais violenta com negros(as) pobres que não possuem qualquer tipo de estrutura, incentivo ou esperança de resolver essas situações.
A denúncia da atriz incentiva milhões de negras e negros anônimos que sofrem com isso a fazer o mesmo. Não denunciar é ser conivente, é ser cúmplice, é aceitar a opressão. É preciso fazer um escândalo, gritar, mostrar, incomodar, escancarar para o mundo todo. 

No post em questão, as pessoas que fizeram os comentários ofensivos são todos homens brancos. Fico imaginando se eles teriam a mesma atitude de desdém se recebessem as seguintes frases:
  • "Você tem seu emprego apenas porque é cotista".
  • "Pensava que o Facebook era apenas pra humanos e não para macacos".
  • "E esse cabelo de esfregão?" 
  • "Já voltou da senzala?"
  • "Limda com M de banana".
  • "Você pode ser mais clara?"
  • "Não sabia que no zoológico tinha câmera".
  • "Cabelo de saco".
  • "Cabelo de lavar louça, esponjaço".
  • "Os traficante pira, cheio de pó na cara".
  • "Deveria estar cortando cana".
  • "Fica postando essas foto preta ai".
  • "Quem postou a foto desse gorila no Facebook?" 
  • "Criola vadia".
Será que eles, sempre ávidos em expor comentários cínicos sem esboçar o menor constrangimento, pensariam consigo: "Talvez seja muito chato mesmo reclamar né? Por que reclamar? Vou incomodar muitas pessoas com isso, tadinhos. Eles não merecem que eu denuncie, pois se eu denunciar será para me promover". Fica aqui a reflexão.

(Obs.: Essas foram algumas das frases dirigidas a Taís Araújo em sua página do Facebook).

4 de novembro de 2015

Consentimento explicado em quadrinhos

Os quadrinhos abaixo não mencionam nada sobre estupro, mas ao mesmo tempo têm tudo a ver com isso. Você consegue perceber o porquê?
Imagem original em inglês retirada de http://everydayfeminism.com/. Tradução livre.
Esses quadrinhos, publicados originalmente no blog Everyday Feminism, ilustram situações do cotidiano que mostram como o não consentimento é errado. As personagens agem de forma claramente egoísta e não levam em consideração a vontade do outro. Porém, se essas situações forem substituídas pelo não consentimento em uma relação sexual, muitos homens não enxergarão problema algum.

Existe um senso comum de que a mulher não precisa consentir quando ela está vestindo roupas supostamente "sensuais", quando convida um homem para sua casa, quando está dormindo ao seu lado, quando está bêbada ou inconsciente, ou consentiu em uma relação sexual em uma vez anterior. Pior ainda, muitos acham que, nesses casos, a mulher tem o "dever" de se submeter à vontade do homem. Isso é resultado da cultura machista que acredita que o corpo da mulher está à disposição do homem quando ocorrem essas situações. Porém, a realidade é que:

Quando não há consentimento, é estupro.

Por que criei este blog?

Nunca fui de expor minhas opiniões sobre temas polêmicos, nem quando ouvi muitos absurdos em diálogos triviais no meu dia-a-dia. Primeiro porque eu me encaixava naquele padrão de quem prefere não se envolver em discussões, e segundo porque eu mesma aceitava muitas opiniões de senso comum.

Após concluir minha graduação em Videira-SC, entrei em contato com leituras diferentes daquelas que estava habituada e me identifiquei com essas novas ideias. Ouvi novos tipos de diálogos e descobri sobre os esforços de vários movimentos sociais na conquista de direitos, alguns dos quais já foram conquistados, sempre usufruí e nunca me importei. Com isso descobri o que deveria ser o óbvio: Que até então eu não sabia nem o mínimo sobre vários assuntos de extrema importância na minha vida e na vida em sociedade, mas caía no erro de achar que já sabia o suficiente. Em outras palavras, descobri que grande parte de minhas opiniões eram baseadas apenas em achismos.

achismo é talvez o pior erro da humanidade. Achar alguma coisa é muito fácil e cômodo, pois não exige de nós o esforço de procurar outras opiniões, compará-las e correr o risco de descobrir que estamos errados. Acreditamos que já sabemos o suficiente e assim cometemos um erro igualmente grave, que é o de propagar opiniões sem fundamentos e influenciar outras pessoas, também desinformadas, a achar que tais ideias são certas e que é assim mesmo que deve ser.

A afirmação "Eu não sei" é a frase mais sábia e ao mesmo tempo cada vez mais rara nos diálogos de atualmente. Julgamos que já sabemos o suficiente sobre todos os assuntos, principalmente os assuntos mais polêmicos. Ficamos fechados em círculos de opiniões superficiais, opiniões triviais e de senso comum, não aceitando conhecer aquilo que é diferente. O erro não está em não saber. O erro está exatamente em não saber e achar que sabe.

A criação deste blog foi motivada por um episódio que vivi em um grupo do Facebook de moradores da minha cidade natal, Fraiburgo-SC. O grupo é aberto e possui uma interessante descrição na qual dá as boas vindas a todas as pessoas que queiram participar de debates sobre assuntos em geral, mesmo os assuntos que não possuem relação com acontecimentos da cidade. Nesta página do Facebook, a maioria das opiniões são preconceituosas e discriminatórias a diversos grupos. Há até mesmo opiniões que atentam contra os Direitos Humanos e as liberdades individuais. Tais opiniões não são propagadas por trolls da internet, mas pela maioria dos participantes, entre os quais estão pessoas influentes do comércio e da política da cidade. Em resumo, considero um absurdo a forma leviana como temas importantes são expostos. Quando fiquei diante destes comentários pela primeira vez, eu, que nunca havia entrado em uma discussão, senti que não me posicionar seria mais absurdo ainda. Assim, resolvi intervir.

Tudo começou quando um participante (homem, branco) menosprezou um quadro de dados que expõe a baixa representatividade de mulheres, negros e outras minorias no Congresso Nacional. Expus, de forma detalhada e evitando achismos, uma série de dados e análise de contextos históricos que mostram que a baixa representatividade é reflexo de injustiças sociais, e que isso não é um assunto insignificante ou de menor importância. Esta pessoa, e mais outra (também um homem branco), responderam aos meus comentários de forma rasa, ignorando os dados que apresentei. Além disso, as respostas vieram recheadas de comentários machistas e racistas. No final acabei deletada e bloqueada do grupo, sem aviso prévio ou chance de me defender. Segundo informações que eu soube posteriormente através de terceiros, os dois alegaram que meu perfil era fake. Talvez eles não sejam capazes de imaginar que exista uma mulher com capacidade de contra-argumentar, ou talvez seja a forma que eles reagem quando não possuem mais argumentos. A descrição do grupo convida as pessoas ao debate de ideias. Na prática, o contraponto não é aceito pois, quando existe, é rechaçado de forma violenta.

Neste blog tenho a liberdade de apresentar informações que desconstroem os discursos de ódio e intolerância difundidos nessa página do Facebook. Acredito que este espaço é mais adequado para organizar todos os contrapontos e assim mostrar que sempre existe o outro lado da moeda, opiniões diferentes, visões diferentes, vivências diferentes. Também vou usar este espaço para expor temas relacionados a movimentos políticos e sociais sob perspectivas diferentes do senso comum, incluindo temas que analisam as intersecções entre esses movimentos (por isso o título do blog). Sei que estarei contrariando a opinião da maioria dos Fraiburguenses que porventura chegarem a ler esse blog. Por outro lado, creio que, quando nos incomodamos com o trabalho de analisar posicionamentos de forma mais ampla e sob diferentes perspectivas, temos mais chances de nos libertar de individualismos e preconceitos.